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Defensoria Pública de Minas Gerais encerra congresso com debates e oficinas sobre a política de drogas no Brasil

A Defensoria Pública de Minas Gerais (DPMG), por meio de sua Escola Superior (Esdep), em parceria com a Plataforma Justa, a Escola Superior da Magistratura Desembargadora Jane Silva (Emajs), o Instituto de Ciências Penais (ICP), o coletivo “Repensando a Guerra às Drogas” e a Liga Acadêmica de Direito e Processo Penal (Lapden) da UFMG, promoveu, nos dias 1º, 2 e 3 de outubro, o 3º Seminário “Repensando a Guerra às Drogas”. O encontro consolidou-se como um marco no debate nacional sobre a atual política de drogas.

Abertura

Para o painel de abertura, com o tema “Tudo precisa mudar para continuar como está”, participaram a promotora de Justiça e integrante do coletivo Repensando a Guerra às Drogas, Cristina Labarrère; o advogado, mestre e doutor em Direito Penal, diretor da Plataforma Justa, Cristiano Maronna; o psicólogo Anderson Mattos; o médico psiquiatra Leandro Ramires; e a professora de Direito Penal e Processo Penal, Alana Guimarães Mendes.

Mesa de abertura: (Esq. p/ dir.) Alana, Leandro, Anderson, Cristiano e Cristina

Durante a mesa, Cristina Labarrère destacou que o evento buscava promover uma análise crítica dos impactos das atuais políticas de drogas, classificadas por ela como “um absoluto fracasso e um desastre”, configurando-se como uma guerra “contra pessoas e nunca contra drogas”. O objetivo central, segundo ela, era adotar premissas racionais e científicas, ouvindo diretamente “as pessoas que são afetadas por essa política”.

Cristina Laborré — Foto: Gustavo Soares

Cristiano Maronna apresentou uma análise detalhada da decisão do STF sobre o artigo 28, qualificando-a como um exemplo do “gato pardear”, no qual “é preciso que algo mude para que tudo permaneça como está”, resultando em uma solução tímida. Ele também salientou o subfinanciamento da polícia investigativa e o protagonismo do “testemunho policial” na perpetuação das injustiças.

Cristiano Maronna — Foto: Gustavo Soares

Anderson Mattos abordou o uso de substâncias sob a perspectiva da saúde mental, citando Freud para explicar que recorremos às drogas “para suportar a vida, suportar o outro, suportar as coisas da vida”. Ele enfatizou a necessidade de uma regulamentação que reconheça saberes ancestrais e que evite a “mercantilização excessiva” pela indústria farmacêutica.

Anderson Mattos — Foto: Gustavo Soares

Leandro Ramires compartilhou a história de seu filho, Benício, que utiliza cannabis medicinal cultivada no quintal de casa, substituindo o consumo de 25 comprimidos. Sua defesa mais veemente foi a de que o “uso de cannabis para fins medicinais jamais pode ser uma prerrogativa exclusiva da medicina”, ressaltando que a sociedade civil organizada tem assumido papel de liderança nas pesquisas científicas sobre o tema. Ramires encerrou sua fala propondo a Justiça Restaurativa como um caminho “civilizatório” e “espetacular” para resolver conflitos relacionados às drogas de forma transparente e horizontal, citando um caso concreto ocorrido em Mato Grosso do Sul.

Leandro Ramires — Foto: Gustavo Soares

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Racismo e perspectiva de gênero, considerações sociológicas e jurídicas

O primeiro painel do dia contou com a participação do ministro do Superior Tribunal de Justiça, Sebastião Reis; da professora associada do Departamento de Sociologia da UFMG, Ludmila Ribeiro; da educadora social e advogada Izabela de Faria Miranda; e da advogada, mestre e professora universitária Jessica Maria Gonçalves da Silva, que atuou como mediadora da mesa.

Mesa – Painel dia 2 – Manhã: (Esq. p/ dir.) Izabela, Jéssica, Sebastião e Ludmila

O debate evidenciou a seletividade estrutural do sistema penal brasileiro, com foco no racismo e na perspectiva de gênero.

Ludmila Ribeiro apresentou dados empíricos que desconstroem a lógica penal norte-americana, demonstrando que, no Brasil, características extralegais de gênero e raça influenciam diretamente nas condenações. Segundo a pesquisadora, “homens têm 34% menos chances de encarceramento do que mulheres” quando se trata de penas privativas de liberdade. Além disso, “ser negro aumenta a chance de condenação em 31%”, sendo a “testemunha policial” o fator mais determinante no resultado final do processo: quando única, ela eleva em 126% as chances de condenação.

Ludmila — Foto: Gustavo Soares

Izabela de Faria complementou a análise sociológica com uma leitura crítica, classificando a política de guerra às drogas como um “projeto político de extermínio dos homens negros”. Ela destacou que mais de 90% das pessoas encarceradas ou assassinadas são homens e sintetizou a lógica de criminalização na frase: “Homem negro nem é homem, é bandido”. Por fim, defendeu o “feminismo abolicionista” como uma utopia necessária para a transformação social.

Izabela — Foto: Mateus Felipe

O ministro Sebastião Reis reforçou a denúncia sobre a racialização do sistema, lembrando que 68% da população carcerária é composta por pessoas negras. Em sua fala, mencionou um processo em que um policial justificou uma abordagem por ter avistado “um indivíduo negro em cena típica de tráfico de drogas”. O ministro lamentou o retrocesso representado por decisões recentes do Supremo Tribunal Federal que indicam aceitar a noção de que o “tirocínio policial é suficiente para demonstrar” justa causa para uma abordagem, embora tal fundamento seja, segundo ele, “completamente irrelevante dentro do sistema” no combate à criminalidade.

Sebastião Reis — Foto: Mateus Felipe

Ativismo e desobediência civil. Marcha da maconha. História. Perspectivas do usuário de drogas ilícitas

Dando continuidade aos debates da manhã, o segundo painel abordou o fracasso das políticas de tratamento e a urgência de priorizar o cuidado em liberdade.

Participaram da mesa o cientista social e ativista da Marcha da Maconha, Bernardo Fogli, e a militante da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (Renfa), Vanessa Lima. A mediação foi conduzida pelo advogado Marcelo Sarsur.

Bernardo ressaltou a importância da “desobediência civil mesmo” para manter a luta ativa, destacando que a Marcha cria temporariamente uma “realidade que ainda não existe”, como a liberdade de fumar na rua. Ele celebrou o caráter histórico da Marcha de Belo Horizonte neste ano, quando, por meio do diálogo com as forças de segurança, “não houve condução para a delegacia de nenhum manifestante” que portasse quantidade destinada ao uso pessoal.

Bernardo — Foto: Mateus Felipe

Vanessa Lima trouxe a perspectiva de gênero, afirmando que “quando a lei se torna um instrumento de opressão, desobedecer passa a ser um ato legítimo de sobrevivência”. Segundo ela, o trabalho da Renfa consiste em praticar a “desobediência do cuidado”. A militante sintetizou a pauta do coletivo ao afirmar: “A gente não reivindica apenas o direito de usar drogas, isso é muito pouco, mas o direito de existir fora da lógica da criminalização”.

Vanessa Lima — Foto: Mateus Felipe

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Fracassos e sucessos da política atual de drogas no tratamento a usuários abusivos. Comunidades terapêuticas; Caps AS; Moradia Primeiro

Em continuidade aos debates, o segundo dia do congresso contou com a participação do jornalista e produtor editorial Luan Cândido; da militante do Movimento Nacional da População de Rua, Alessandra Martins; do professor e doutorando em Direitos Humanos, Fabrício Rosa; e da integrante da Frente Mineira Drogas e Direitos Humanos, Camilla dos Santos. A mediação foi conduzida pela defensora pública Paula de Deus.

Mesa – Painel dia 2 – Tarde: (Esq. p/ dir.) Paula, Fabrício, Camila, Alessandra, Luan

Com 20 anos de trajetória nas ruas, Alessandra relatou que foi sentenciada por uso de crack quando estava grávida, fazendo com que sua filha passasse “os primeiros 11 meses de vida dentro do sistema prisional”. Ela criticou o sucateamento dos CAPS e denunciou as comunidades terapêuticas como “lugares de violência, de opressão e de cárcere privado”. Ressaltou ainda que o uso de drogas, muitas vezes, é uma forma de “sanar a dor” causada por traumas e preconceitos.

Alessandra — Foto: Mateus Felipe

Em sua fala, Luan Cândido relatou como o racismo e a violência policial — incluindo tortura sofrida aos 16 anos — o levaram ao uso de drogas. Ele ficou encarcerado por sete anos e não conseguia mais trabalhar com comunicação. Em seu depoimento, destacou que encontrou uma saída por meio do CAPS AD (Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas), onde recebeu tratamento em liberdade e pôde focar em “afeto, contato com as pessoas e militância”.

Luan — Foto: Mateus Felipe

Camilla dos Santos apontou como principal fracasso da política atual o “avanço e fortalecimento das comunidades terapêuticas”, que recebem incentivo financeiro público em detrimento do cuidado em liberdade. Ela defendeu a metodologia Housing First (Moradia Primeiro), cuja proposta é “primeiro garantir a casa, depois assegurar o restante”, citando a experiência de Belo Horizonte, que apresentou resultados positivos, como 98,4% dos participantes relatando aumento da sensação de segurança.

Camila — Foto: Mateus Felipe

Já Fabrício Rosa trouxe a perspectiva de policial rodoviário federal, ativista gay e antipunitivista. Sua fala mais enfática foi um chamado para que os ativistas “saiam do armário verde” e a defesa de que a segurança pública não deve ser medida pela quantidade de prisões, mas pela “capacidade de reduzir mortes, reduzir estupros, mediar conflitos e gerar pacificação social”.

Fabrício — Foto: Mateus Felipe

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Utopia: Modelos Regulatórios de drogas para o Brasil

Na manhã do último dia do congresso, participaram a advogada e mestre em Direito Internacional Público, Cecília Galício; o defensor público Flávio Lellis; e o advogado Emílio Figueiredo. A mediação foi conduzida pelo juiz de Direito, Roberto Corcioli.

Mesa – Painel dia 3 – manhã: (Esq. p/ dir.) Flávio, Roberto, Cecília e Emílio

Em sua fala, Flávio Lellis reiterou que a “guerra às drogas foi perdida” e que a descriminalização “nada mais é do que aceitar uma realidade já posta: as drogas estão liberadas, só que sob o controle do crime organizado”. Ele defendeu substituir o controle externo policial por uma formação pautada em “educação e direitos”, missão que deve ser assumida pela Defensoria Pública.

Flavio Lellis

Emílio Figueiredo reforçou que o fenômeno das drogas não cessará, “mesmo com a pena de morte”. Sua principal contribuição foi defender a utopia como um ideal possível, destacando que o “pacto de paz” na Colômbia deveria servir de modelo para o Brasil, a partir de uma iniciativa estatal baseada em justiça de transição e reparação histórica.

Emílio — Foto: Mateus Felipe

Cecília Galício, por sua vez, enfatizou o potencial revolucionário da participação social. Relatou a experiência inédita em São Paulo, onde crianças de 12 a 14 anos foram incluídas em uma conferência municipal sobre drogas, afirmando que o aprendizado proporcionado por elas foi “impressionante” e revelador sobre a construção de novas perspectivas para a política de drogas.

Cecília — Foto: Mateus Felipe

Palestra Magna: A experiência do Uruguai com uma política de drogas antiproibicionista

Na palestra magna, o Dr. Augusto Vitale Marino, ex-presidente do Instituto de Regulação e Controle da Cannabis (IRCCA) do Uruguai, detalhou a experiência pioneira do país sul-americano.

Mesa – Palestra Magna (Esq. p/ dir.) Augusto Vitale, Anderson Mattos e Flávio Wandeck

Marino ressaltou que a regulamentação uruguaia foi construída a partir de “políticas baseadas em evidências” e de amplo diálogo com a sociedade civil e os próprios usuários. Segundo ele, o objetivo central da lei foi “proteger, promover e melhorar a saúde pública da população”.

Augusto Vitale — Foto – Mateus Felipe

O especialista refutou a ideia de que a regulação aumentaria o uso problemático, afirmando que “regular não implica transformar nossos filhos em zumbis”, mas sim “proteger o usuário” e estimular a autorregulação. Explicou ainda o complexo sistema de controle de produção e genética implementado no Uruguai, mecanismo que garante a qualidade do produto e evita acusações de abastecimento ao narcotráfico.

Foto geral – encerramento

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Oficina “Ser Território Próprio”

O congresso foi encerrado com uma oficina na qual os participantes puderam compartilhar experiências e vivências. A atividade ocorreu de forma reservada e não foi transmitida.

Mateus Felipe – Jornalista/DPMG

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